3 de janeiro de 2016


                                mergulhão-caçador tratando o filhote














                                 piru-piru




                                          o voo da garça-branca-grande

                                          martim-pescador-pequeno tratando do filhote
                                          Suiriri caçando um libélula

2 de janeiro de 2016



Jairo ferreira machado
Deus existe
Quando eu era criança
Acreditava que Deus era um Pássaro
Me olhando lá do céu
Tomando conta de mim
Tanto para saber das minhas artes
Como das minhas boas ações
(Se é que um moleque faz boas ações?)
Acreditava que Deus
Era um Vigia incansável
Que me daria proteção
No momento que eu precisasse
Logo não tinha nada a temer
Bastava que eu fizesse o Sinal da Cruz
E rezasse o Ato de Contrição
Na hora de dormir...
E tomasse banho antes de deitar
Caso contrário, o meu Anjo da Guarda
Não cuidaria de mim
Eu vivia de perguntá-la
Onde o meu Anjo da Guarda passava o dia?
Ela me dizia muitas coisas
Crenças, mitos, suposições...
Nada que eu pudesse entender
Talvez não tivesse mesmo a resposta certa
Mesmo assim, eu acreditava em suas palavras
Era mais fácil para se viver
E saber que nunca estamos sozinhos
Eu continuo não estando só
Deus ainda me olha lá do céu...
Passados todos esses anos
Depois de ter repetido a mesma coisa
Para os meus filhos
Dizendo a eles algumas incertezas
Hoje, como sempre
Eu continuo não sabendo muitas coisas
Só sei que Deus existe
Em forma de Pássaros, sei lá?
Ou de um Anjo
Um anjo barbudo,
De cajado na mão...
Ditando ordens
Consertando os malfeitos
Puxando as orelhas dos moleques atrevidos...
Razão porque, vez em quando
Sinto minha orelha espichar-se
E arder-se...
Pois ainda não aprendi muitas lições
Tenho cá a minha parte criança
Mas sei
É sempre bom ter Deus por perto
Então, eu o digo
Deixa estar, seu Velho Barbudo
Um dia ainda deixo de fazer minhas traquinices
Um dia, uma noite dessas
Quando eu partir para junto de Ti
Como um Pássaro Dourado
Voando para os seus braços...

29 de dezembro de 2015

Uma rês fujã



Uma rês fujã.

Uma rês fujã, escreveria assim João Guimarães Rosa. E tratando-se de João Guimarães Rosa, não se discute: assina embaixo e alardeia. Vínhamos, meu irmão e eu, pelo vão de dois barrancos, descendo o estradão. Um ruído de tropel e sacolejo de úbere de vaca indo à frente – era a nossa, de certeza que era.
A montaria assim, já amuada da afobação. Cercar a vaca aqui cerca acolá... mas a bruaca tinha o corisco nos cascos – desembestara-se da manada, com idéias próprias, descabidas. Fujã para onde? Desde que sabíamos, ali era caminho desencontrado. E nós, inocentes, atrás, o cú doendo, montados em dois cavalos trotões. Os mil pulos, pinotes e escorregões...
Meu irmão mais novo vinha na rabeira. Choramingava a sorte. Lembro, em tempo, que o anoitecer chegava nebuloso e a vaca tinha os cornos apontados lá para os cafundós. Em rumo arriscado. Lugar mal falado, de assombração, coisas e tais...
A rês mesma era uma abantesma da breca. Preta até o branco dos olhos, branca somente nas patas. Cravei a espora no sovaco do trotão Ou nóis cerca ela, ou tamos fudidos! Falei para o cavalo, sem esperar pelo irmão. Cada vez mais na rabeira.  Todo cagado de medo. No galope, por pouco não passei pela bruaca, que de repente desapareceu. Escafedeu-se de toda na escuridão. Meu cavalo passarinhou, assombrado. Meu fiofó trancou-se, que nem pensamento passava.
Veio-me uma dor de barriga dos infernos, vontade de cagar. João Guimarães Rosa talvez escrevesse escurrideira; mas ele era João Guimarães Rosa, brincava do linguajar.
E agora, a rês fujã dele, ou minha, sei lá, virara assombração de vez; nem sinal de rês. Eu ali com cara de menino que viu o diabo na cruz. O cavalo empacou, de olhos esbugalhados.
No momento meu irmão chegava numa palidez cadavérica dizendo que a rês tinha voltado. Topara com ela, na curva do caminho. Mas viu apenas as quatro patas brancas. Ia desembalada, sem fazer alvoroço de casco no chão; num avoamento dos  infernos ele disse, tal qual João Guimarães Rosa.
Riscamos a espora nos trotões que foi uma só peidação e voltamos. Meu irmão gritando que eu o esperasse. Mas confesso, não há quem espere alguém numa noite escura no meio de um cafundó, mal assombrado, e correndo atrás de uma rês insensata, fazendo-se de alma de outros mundos.
O meu trotão agora voava.  Ainda que a assombração ou o que fosse aquilo, estivesse à nossa dianteira. Mais adiante, já perto da vaquejada, alcancei-a; a rês fujã estava lá, sentada à beira do caminho agora vão dizer que passei dos limites, endoidei, que vaca não senta! Disso eu sabia, até aquele momento. E pior, a danada, esbaforida, balançou os cornos para o meu lado. Caguei...
Tinha a cara pálida, como estivesse vendo também alguma assombração. Ou duas!... Atrás de mim, o irmão. Segurei o cavalo na rédea. E perguntei a ele – a vaca está mesmo sentada ou aquilo é coisa doutro mundo? 0s olhos do irmão eram dois coités, saltando para fora da cara.
O tempo passando. Mas que aquela rês fujã estava mais para uma aparição, isto estava. Foi então que surgiu na estrada, como num encanto, montado em seu cavalo baio, o João Guimarães Rosa. Falou alguma coisa para a tal fujã e essa se desarranjou de sentada e saiu solevando as ancas, os cornos alevantados. Foi passo apressado, cantando os cascos no chão. João Guimarães Rosa indo atrás, assoviando um verso. Cheio de ideias na cabeça: essa rês é uma das minhas.
(O lugar, nas bandas de Minas Gerais, Cordisburgo, nos idos de 1967).    

Carrapateiro

Tipo de gavião que se alimenta de carrapatos dos animais: carrapateiro

24 de agosto de 2011

Livro "Chuva de estrelas"




















Para baixar o livro, clicar aqui e aguardar a contagem dos 90 segundos.

27 de janeiro de 2009

Essa tal de Ressonância

Essa tal de Ressonância

Ele ouviu-me as queixas e solicitou uma Ressonância Magnética; da cabeça, Sabe-se lá quanta merda tem aí dentro, bem podia ter pensado, no que obediente fui fazer, O senhor tire sua roupa e coloque esta camisola, Deite-se ai, fique tranqüilo, E logo me foram imobilizando, enfiaram-me primeiro dois tufos de algodão nos ouvidos, depois me cobriram as orelhas, diga-se, com certo carinho, balbuciavam-me beneficies, mas depois arriaram uma armação sobre minha cabeça que me pareceu de aço, o que me fez lembrar naquela hora o Homem da Máscara de Ferro, eu ali engaiolada a cara e o corpo estreitado numa padiola, Tome esta campainha, qualquer coisa você aperta, E feche os olhos, no que eu momentos antes lia Jose Saramago, lembrei o Ensaio da Cegueira, que cego mesmo devia estar o escritor, trocando vírgula por ponto e vice-versa, ou tivesse ele um teclado caduco, já trocando as bolas, ou mesmo a Editora nem tivesse corrigido o livro, já que se tratava de Saramago, venderia do mesmo jeito, como vendeu, e eu cá desaprendi ali um pouco do que eu sabia de pontuação, então, se é pra fechar os olhos, vamos nós. Fechei. Quantos minutos, Uns quinze, disse a técnica, Quinze minutos enfiado aqui nesse escurinho, até dá pra tirar uma soneca, só pensei, pois que segundos depois, alguma coisa começou a acontecer lá fora, eu que parecendo ter entrado num oco de pau, como fazem os guaxinins na hora de dormir, mas de repente o pau era eu mesmo sendo lavrado, furado, com todas aquelas ferramentas que batiam lá fora, como se tivesse lá uma montoeira de carpinteiros, carapinas, o que fosse, a me aplainar, lavrar, desbastar, começou assim como as picadas de um pica-pau e de repente eram dois pictarodáctilos, um bicava e o outro respondia no ato, tão ensurdeceras eram as batidas, outras vezes talhavam, outras vezes davam mesmo era de cavadeira, picareta, num momento era uma furadeira, só que a técnica decerto não soubera ajustar a broca e a broca roia doidamente, aqui, acolá, Se atente seu moço, dizia eu pra mim mesmo, vai que essa broca treteia e atravesse esse latão e pare nos meus bofes, ou nos meus miolos que já não andam bem, e eu bobo ali, de olho fechado a mercê das meninas. Saramago tinha razão, nada mais educativo que se ficar cego alguns minutos para estarmos por conta da sorte e pensar no quanto isto é ruim, eu soletrava cá com os meus pensamentos, Logo, logo eu vou escrever sobre isso, e ria comigo mesmo, eu me imaginando um cerne de madeira, as meninas dando marteladas na minha bigorna, o meu estribo estridulando. Mas eu não tenho juízo mesmo, não dormi, nem nada, apanhei a torto e a direito na cabeça, embora nada doesse. Agora vamos tirar o senhor daí, Pode abrir os olhos, Está se sentindo bem? Do lado direito um sorriso bonito, alvissareiro, do lado esquerdo a bondade, Desça devagar, Desço, mas vocês vão me pagar, ah se vão!...Então-se, por isso, até posso dizer que a despontuação foi por conta da meritória coça na cabeça que levei. E voltar depois do exame ao doutor que dirá: Moço, você não tem nada na cabeça! Oh, tenho sim, só que o senhor, Doutor, educado, não quer dizer...

jfmachado_8@hotmail.com

26 de fevereiro de 2008

A moça

Tinha ela os lábios carnudos, vermelhos do batom, e os olhos negros, grandes, sombreados pelo rímel. A pele macia de pêssego - ele assim imaginava. Os cabelos lisos e curtos, arrematados pouco acima dos ombros, os reflexos reluzindo ao sol. O sorriso retratando bem as alvíssaras que lhe vinha de dentro; um encanto de mulher. Os brincos cintilantes. Vestia-se maliciosamente; a saia curta verde musgo externando o teor lúbrico de suas coxas morenas. Caminhava decidida, rebolando a escadeira; como se o corpo não pudesse mesmo esconder-lhe o espírito venturoso; nem que se esforçasse pra isso – exultava-se como o raiar das manhãs. Os seios artesanalmente esculpidos, sobrando no vê da blusa, os mamilos ponteados, nus, debaixo do tecido de cetim, supondo lá infindas sensualidades; por pouco ele não os via: a cor rósea, a lascívia, a abastança. Ela tampouco fazia questão de escondê-los; completavam a sua suntuosidade. Calçava sempre sandálias de salto alto. Um cordão retorcido amarelo cingia-lhe a cintura fina, o laço descaído de lado; fácil, fácil de desatar. Nem seria necessário; bastava levantar-lhe a saia - fosse ele o afortunado. Não era. A moça passava por ele, insinuante, deixando um rastro de perfume pela calçada da Felipe Schimit, o andar macio, como quem pisa em tapete mágico; a magia feminina. Via-lhe a alvura dos dentes, risonhos pro seu lado; podia retribuir, mas temia pelo resultado – não tinha dentes tão bonitos; ou melhor, não os tinha. Apenas acompanhava-a de olhos – era o que podia fazer; se muito! No fim da rua a moça desaparecia na portaria de um prédio de luxo: era secretária executiva. Ainda podia sentir o perfume dela, sendo levado suavemente pela brisa do mar. Ouvia o tock, tock de suas sandálias aos poucos sumindo no calçadão. Balbuciava-lhe palavras íntimas, do silêncio dos seus lábios. Tocava aqueles seios, beijava-os, em pensamento. Fazia-lhe juras de amor. Antes, apoiava-se no próprio cabo da vassoura, para a emoção não o levar ao chão. Mas logo acordava dos seus sonhos: era somente um varredor de rua. Amanhã, bem cedo, ela retornaria e sorriria novamente pra ele os lábios de batom, e passaria sestrosa, deixando atrás de si um rastro de cobiça, onde ele se embebedava; todos os dias da semana. E ele rezava que o fim de semana fosse breve; muito breve - dava-se ao descuido de sentir saudades dela; isto, ao menos, ele podia.

23 de fevereiro de 2008

Saudades

Sinto saudades de alguma coisa, mas não sei do quê? Como se eu tivesse perdido ou deixado de fazer algo muito importante na minha vida; como, por exemplo: ter dito o que eu não disse; ter calado, na hora da ofensa; podia ter parado para cheirar uma flor e não ter passado sem olhar o jardim; devia ter caminhado o caminho inteiro, em vez de ir por atalhos; ter olhado o horizonte, em vez de baixar os olhos; ter descansado numa sombra fresca, e não correr pra chegar rápido; ter sido criança mais tempo, em vez de querer crescer logo, ser adulto, trabalhar, casar, ter filhos e depois, nem os curtir – pois a vida passa depressa! Choveu muitas vezes e eu nem agradeci a chuva; tampouco eu agradeci o sol; muito menos agradeci a natureza – achei que Deus tinha a obrigação de me dar tudo isso. Não prestei atenção aos frutos e nem provei os seus sabores; eu vi o colibri pousado num galho, e fiz pouco caso; havia alguém necessitando de ajuda, mas não ajudei, fui em frente; na hora de saborear a comida, vagarosamente, eu a engoli, com pressa. Pois é, eu devia ter fechado a torneira, na hora de me ensaboar, mas deixei a água escapar, sem me preocupar com a sede do outro; em vez de ir pra escola, eu gazeteei; em vez de ler um bom livro, eu me revoltei quando ganhei um, no meu aniversário. É! Eu sinto saudades de alguma coisa, mas não sei do quê? Eu deveria ter deitado na relva para admirar as estrelas, mas nem me importei em olhar pro céu; passei pelo riacho e nem sequer o ouvi. Eu podia ter conversado mais, conhecido mais pessoas, mas coloquei o meu walkman e permaneci em casa, trancado no meu quarto, na frente de um computador; eu podia ter escutado os meus pais, mas preferi os amigos inexperientes, como eu; eu podia ter trocado mais carícias, mas preferi a bofetada, a agressão moral. É, “a vida é muito curta pra ser pequena”. Agora, sinto saudades de alguma coisa, mas não sei do quê? Ou quem sabe seja de muitas coisas, que na minha pressa, deixei de realizar? Pode ser. Não sei se haverá tempo, mas algumas delas, ainda eu posso fazer.
jfmachado_8@hotmail.com

15 de fevereiro de 2008

Pedra Bonita


Tanto a pedra era bonita por sua circunstancial imponência insurgindo da terra no horizonte, iluminada a sua face leste pelo reflexo do luar nos filetes d´água que dela escorria, quanto era bonita pela beleza que os olhos dele julgavam ver lá longe, estampado na pedra - o rosto da mulher amada: Ana Carolina. Senão eram os efeitos da lua na pedra, era a lua derramando lá os seus encantos, fazendo desenhos mágicos no rochedo: o sorriso de Ana Carolina, aqueles lábios sensuais, exatos no formato e gosto de quando ele a beijava em seus sonhos. Imaginava que a jovem realmente subisse o alto da montanha, nos dias de lua cheia, para melhor vê-lo à distância, muito além da mansidão dos morros! O brilho da lua era os olhos dela procurando os seus. Assim, ele retribuía da forma como mais sabia: com o seu infinito olhar de moço apaixonado. Dali, da curva da estrada, o ponto de onde melhor podia contemplá-la, naquela hora, ele apeava do cavalo, atendendo aos chamados do próprio coração. Quem sabe a lua lhe mostrasse novamente, a face de sua amada, naquele noite? Balbuciava em pensamento, não uma palavra qualquer, mas o nome dela: Ana Carolina. Falava à lua, como se estivesse falando com o seu amor. Talvez a lua lhe desse notícias, dela? Onde ela estava? Como estava? E se pensava nele? O cavalo ao lado, na lassidão do cansaço, enquanto ele suspirava fundo o amor que de há muito lhe magoava o peito! O animal parecendo querer ajudar: criar asas e levá-lo à imensidão da pedra. Ou onde Ana Carolina estivesse, naquele momento; mesmo que fosse aos confins do mundo: queria dar fim àquele sofrimento. Toda lua cheia ele permanecia horas ali, contemplando a montanha, os olhos na pedra bonita.
O que havia lá nas lonjuras do horizonte, de tão importante, que ele se amargurava tanto – parecia querer saber o cavalo? Num certo momento, ele sorria; noutro, chorava. Como se Ana Carolina aparecesse e novamente sumisse feita cena passada numa tela de cinema. Iam-se os desenhos mágicos, ia-se o rosto de Ana Carolina: a imagem que a lua projetava pra ele, na pedra, modo acalentá-lo. Mas qual o quê, a lua só fazia aumentar o seu desespero; estava desesperançado, momento em que uma nuvem cobriu a lua por inteira; e nada mais ele pode ver – escureceu-se o horizonte tanto quanto escureceu nos seus olhos e no seu coração. Assim, o brilho do seu olhar foi-se indo aos poucos, quando percebeu que tudo não passava de ilusão: Ana Carolina não existia. Amava um fantasma. Tal como são claras e escuras as vicissitudes do amor. E nunca mais ele parou naquele trecho de caminho. Nem sequer olhou mais a lua cheia; tampouco olhou a pedra bonita, lá distante... No dia em que o seu cavalo também bateu asas e voou; o levando na garupa, pra longe dali.

11 de janeiro de 2008

Amor de verão

O tecido de cetim solto sobre a pele macia; ele não havia lhe tocado pra saber, mas podia imaginar a textura daquelas formas femininas, os relevos curvilíneos em tamanho ideal, os côncavos onde o vestidinho se insinuava exato, como uma segunda pele entre-lhe as coxas, onde o vento contrário formava um colo e seus olhos não perdiam de se meterem ali, por inteiros. Diariamente ela passava em frente onde ele armava sua barraca, naquele verão; certo dia até falara um galanteio pra ela; mas não passara disso: ela nem ligara. Foi a procura, mas não mais a encontrou. Agora, ressurgia novamente. Via-lhe a perfeição da silhueta; a sombra dela projetada na areia caminhando ao lado. Aqueles seios impávidos sobressaindo-lhe do tronco, supostamente nus, os mamilos pontuando duas pirâmides simétricas, artesanais, lúbricas. Houve um sorriso, mas ele sequer retribui; não achou que merecia ou mesmo nem percebeu - tinha os olhos firmes lá, nos seios dela, imaginando-os, degustando-os em mente. Ela olhou novamente; sorriu-lhe. Então ele voltou à realidade – aquele olhar tinha um endereço único – acreditou! Acompanhou-a de olhos, os glúteos firmes em medidas e movimentos exatos, se elevando e baixando a cada passo dela, ela indo praia afora. Então, ele levantou-se, correu e a alcançou; não podia perdê-la novamente, no meio da multidão, como das vezes anteriores. Aparelhou-se com ela e recebeu em troca outro sorriso: os lábios grossos e acentuados no batom, os grandes olhos azuis refletindo nos seus um brilho incomum; como o sol tocando as ondas do mar. Era linda e sensual. E livre - pareceu-lhe -, a começar pela túnica sobrepondo-lhe à pele de pêssego; nua completamente por baixo – imaginava -; não fosse à tímida calcinha lhe marcando levemente o vestido na altura do bumbum. Cheirava a um recente banho perfumado. Era isso, ela traçara seus planos, maquiavélica, para atraí-lo? O verão já estava acabando. Era aquela a última vez que passaria por ali; depois, iria embora; quem sabe... Perguntou-lhe o nome - Rosalina. Ele apertou-lhe a mão – Floriano. E daquele momento em diante até o entardecer andaram juntos pela praia. Riram juntos. O sol havia feito a sua parte; o verão apresentara um ao outro, ainda em tempo. E quando o crepúsculo vespertino se foi, eles também se foram. Feitos aves de arribação - feitos um casal de gansos, batendo asas juntos.

6 de janeiro de 2008

Um cão chamado Leão


Cidade do interior. Cinco ou seis jovens ali jogando conversa fora em torno de um banco de jardim. O sereno já molhando as plantas, tanto quanto seus cabelos. Há muito acabara a sessão do cinema; a cidade estava serena e sonolenta. Não havia muito que se comentar do filme, do faroeste; a não ser que alguém lá torcia pro índio; mas isto, já era sabido na cidade: o sujeito era o primeiro a entrar na sala de projeção e sentar na fileira do meio. Bastava o mocinho aparecer que ele começava a gritar:- Cuidado índio! Lá vem o mocinho. Esconda atrás da moita... Agia assim, só pra contrariar!
Era um dia de sábado. O que lhes propunha muito tempo pra vadiar. Nada vezes nada, por ali. O friozinho da madrugada chegando. Um vira-lata passou de focinho alto farejando o cio de alguma cadela pela redondeza; vira-lata é isso, não tem hora. Os moços já tinham falado mal das tias e também das namoradas. Falavam agora, de assombração. Foi quando Licencio, sendo o morador mais distante, contemporizou, a tempo: - Que tal irmos à minha chácara roubar as laranjas do meu pai. Proposta indecorosa, sim, mas teria, em contrapartida, a companhia dos colegas. Corria paralela ao caminho uma estrada de ferro, tendo antes os transeuntes de passar pelas margens do cemitério, coisa nem um pouco animadora, para àquelas horas da noite. De pronto, todos aceitaram. – Mas e o Leão? Alguém perguntou. Leão era famoso. Já havia mordido muita gente daquelas bandas; ladrões de galinha, de laranja etc. – Deixe o Leão comigo! Ele me conhece. Licencio, argumentou. E combinaram a estratégia. Ele chegaria pela frente, engambelando o cão, enquanto uns iriam pela esquerda, outros pelos fundos, tendo a obrigação do Zé Orelha, o mais corajoso da turma, pegar laranjas do pé de estimação, debaixo do nariz do velho, pai de Licencio. Tarefa, um tanto arriscada, diga-se. Era lua cheia, mês de agosto, e o tal Leão devia estar alerta, farejando cio também.
Haviam eles de transpor uma cerca de arame farpado; o que lhes pareceu, em princípio, coisa banal; não fosse o azar de alguém tocar a cabeça numa caixa de marimbondo e começar a gritar. Leão empinou de tudo as orelhas, e saiu em disparada. De pronto, o velho pegou da espingarda de dois canos e foi pro terreiro, a geringonça já cuspindo fogo. Leão corria atrás. Licencio corria à frente – Sai Leão, sai Leão... Os outros se rasgando no arame às calças, às camisas, os cambaus; fugiram; cada qual pra onde o nariz apontava.
Voltaram a se encontrar tempo depois, no banco do jardim, sem nada; nem sequer uma laranja. Licencio ali, na palidez de fantasma fugido de cemitério. Passado o susto, riu-se de matar. Ânimos acalmados, cada um foi pra sua casa; dormir. Licencio também foi chegando e chamando de longe – Leão... Leão... O cão, meio que desconfiado, abanou o rabo e minguou-se. De resto, tudo aparentemente normal; a lua, de praxe, prateando os pomares, os arrozais. Licencio abriu a porta, entrou no quarto e dormiu. Acordou no dia seguinte, com o balaio de laranja a seus pés. – Chupe agora, filho! À vontade!... E que não reste nenhuma. E da próxima vez seu burro, cuide-se de não chamar o cão pelo nome...

4 de janeiro de 2008

Um dia, um Amigo Incondicional: Japi

Vinte e dois de julho de 2006, praia do Pântano do Sul, Floripa, Santa Catarina. Clima de verão num inverno com cara de outono. Sete e quarenta horas da manhã. Três peregrinos começando ali uma caminhada, momento que corriam e brincavam na praia três vira-latas. O mais arrojado deles avançando sobre os urubus e as gaivotas que aventuravam o desjejum trazido do mar pelas ondas noturnas. De princípio, me pareceu ser àquele um cão de outras bandas, não afeito à preguiça - dos cães de agora. Vez em quando ainda o vira-lata se metia no mar, por conta de refrescar-se do calor. Enquanto caminhávamos no sentido à praia da Solidão, o cão nos acompanhava, como se fossemos o dono dele, e não ele tivesse nos escolhido, sabe-se lá por qual razão e destino? Tínhamos uma longa caminhada pela frente. Três peregrinos, cada um com seu cajado, pertences, pochetes e mochilas. De início, achamos que o acompanhamento se tratava de boas-vindas costumeiras e que logo o cão voltaria às investidas contra os urubus e as gaivotas; afinal, era sábado, dia de vadiar. Fizemos o trajeto Pântano do Sul, Solidão e chegamos à praia do Saquinho, o cão indo junto, hora à frente, hora atrás. Várias vezes o danado já havia banhado nas águas do mar o seu longo pelo branco-dourado. Não era cão dos grandes, mas sabido que só uma peste! Principalmente quando passava em terreno alheio e os outros cães rosnavam e corriam atrás; momento que ele vinha pro nosso lado, em busca de guarida. Sem muito perceber, já estávamos lhe dando proteção com os nossos cajados. Tempo depois desaparecemos no mato, numa trilha composta de trechos bons e ruins - morro acima, morro abaixo. O cão se comportando condolente conosco nas subidas mais íngremes. Outras vezes, um ou outro de nós lhe dando acolhida, quando ele se assustava com visão qualquer? Ninguém sabia direito o caminho? Assim em certos lugares mais adivinhávamos a direção da trilha. E se muito o cão nos abandonava era por conta de assustar um ou outro pássaro que catava o sustento por ali; e já retornava à trilha, posicionando-se quase sempre entre os seus três novos comparsas; às vezes, alguns metros à frente. Em determinado momento ergui rapidamente o cajado, armei-me, vez que ele, o cão, vinha em desembalada carreira. Coisa boa não era - imaginei. Mas fui em frente. Nadinha de nada! Fosse o que fosse, o cão era assim: andava, olhava, parava; sempre cuidadoso. Quando alguém se adiantava na trilha e os outros ficavam pra trás, ele se punha indeciso; a quem acompanhar? Como que cuidando de todos. Ou mais que isso, preferindo a proteção de todos. Nos dez quilômetros de trilha agreste comportou-se mais prudente, como se não fosse acostumado a andar em capoeiras; também não éramos. Estávamos ali por conta de conhecer o trajeto, alguns momentos de interação com a natureza; decerto, necessidade de sublimação, no desejo de driblar as mesmices da vida. O cão, por acaso, se metera em nosso caminho; à revelia. Como não lhe sabia o nome, passei a chamá-lo de Japi. Talvez, por que precisávamos, vez em quando, trocar alguns olhares, algumas palavras, alguns senões; mormente, diante das encruzilhadas do caminho. Confesso que em alguns instantes, confiei mais no seu faro do que no meu instinto. Por volta do meio-dia chegamos à praia dos Naufragados. Japi correu para refrescar-se no mar, ao passo que procurávamos um botequim para degustar uma água gelada, já na hora do almoço. Refrescado do calor, o cão pôs-se deitado, ressonando, sob a nossa mesa de almoço. Comemos e seguimos em frente. Por conselho dos outros peregrinos, não ofereci comida a ele – Não perca tempo. Esse tipo, não aceita qualquer coisa! Por bem do estômago, já recusara a enchova, como que frita em óleo diesel. Vez em quando batia-nos dúvida atroz: não devíamos atirar pedras nele, o mandando de volta? Mas de volta, pra onde? Não estaria ele indo pra casa? Nós por acaso lhe fazendo companhia? Vez que antes podia ter ido para àquelas bandas, acompanhando outro grupo de peregrinos? Assim, deixamos que ele mesmo tomasse o seu rumo; as suas decisões. Até de banhar-se numa poça d’água suja e ficar barrento, já que os riachos estavam à míngua, visto a escassez da chuva. Na trilha da praia dos Naufragados à Caieira já se podia ver através da copa das árvores o sol tombando no horizonte. Japi, indo, lambendo uma réstia de água aqui, outra acolá. De repente, tive vontade de desfazer-me do peso intestinal, entenda, por conta de um feijão temperado ao dissabor do cominho. Japi ficou por ali, o olhar de soslaio, me vigiando: eu lá, atrás da moita. Não sabia se seguia os outros ou me esperava? Depois, se foi... Quando cheguei lá embaixo, no Boteco, onde os companheiros refrescavam os miolos com uma boa água mineral, Japi tinha-se deitado, descorçoado numa sombrinha, com a língua de fora.. Logo depois, ganhamos o longo asfalto da Caieira, com Japi do nosso lado, precisando mais do que nunca da nossa proteção - tão grande o número de cães querendo esfolar o seu couro. Os invejosos, isolados em seus confinamentos. Japi ali, desfilando pela Caieira, os pelos já limpos e reluzentes ao sol da tarde. – Vá saber o que deu na cabeça desse cão, que nos acompanhou até aqui? Disse alguém. No que respondi – É por essas e outras coisas que “o cão é o melhor amigo do homem!”. Mas nem tão verdadeira, foi à recíproca: trinta quilômetros caminhados, das 07h40min às 15h40min daquele dia, já esgotadas as forças das pernas, os três peregrinos adentraram o ônibus da linha que os levaria à cidade; indo embora. E o cão Japi, sabe-se lá como ficou? Onde ficou? No ponto do ônibus, decerto, sozinho, com o olhar peregrino no sumiço do ônibus na curva da Caieira. Não me lembro ter presenciado alguém de nós lhe agradecendo à companhia? Se muito fiz foi cortar ao meio um recipiente d’água e deixá-lo lá no ponto do ônibus com um pouco do líquido dentro, para que ele matasse a sede. Lá pela madrugada, do dia seguinte, acordei e fiquei pensando? Não podíamos ter recomendado a alguém que tomasse conta do pobre coitado? Podíamos sim. Mas em contrapartida, colaboraríamos para que esse alguém, com a melhor das intenções, ou precisado de boa companhia, colocasse em seu pescoço uma coleira; uma corda. E a liberdade de vir e voltar, quando mais tarde, outro dia, quem sabe, achasse outro grupo de peregrinos indo pras bandas de lá, de onde acabava de chegar? Conformei-me no pensar e voltei a dormir. Japi bem sabe o caminho... E o momento de partir, quando quiser... Tão peregrino quanto àqueles que ele havia acompanhado até ali, naquele dia. Ainda que tarde, obrigado Japi!

3 de janeiro de 2008

Recomendações para uma boa caminhada de peregrinação

Recomendações para uma boa caminhada de peregrinação
Não muito tempo atrás eu fui apresentado a um grupo de peregrinos de Florianópolis, SC, e desde então me tornei um peregrino também; agora, já com alguns quilômetros rodados: já fiz o Caminho das Missões, o Caminho da Luz e por completo o Caminho de Santiago de Compostela, e vários outros Caminhos pelas serras de Santa Catarina. Assim, sabidos os prazeres e as dificuldades vivenciadas em mim e nos outros peregrinos, durante estas andanças, procuro dar aqui algumas orientações aos caminhantes. Acrescento desde já, a quem não sabe, que sou médico homeopata; cito a especialidade para lembrar que os homeopatas são mais precavidos. A natureza é a nossa mãe; e com ela mantemos uma atmosfera de harmonia. Integrando-se a este sentimento, você será um bom peregrino. Mas o bom peregrino precisa se conhecer e se respeitar: esta é a primeira e principal lição da peregrinação.
Certa vez eu ouvi de um peregrino que para fazer o Caminho, bastava querer, por a mochila nas costas e partir. Discordei na hora; você desempenha melhor uma tarefa quando está bem preparado pra ela. Eu ainda não tinha ido a Santiago, mas havia escutado uma história triste contada por outro peregrino que havia voltado de lá; é uma história bonita, vale à pena lembrar aqui, ressaltando o espírito de compaixão desse nosso companheiro. Ele estava no caminho de Santiago, num dia de muito frio, ia passando e percebeu uma pessoa obesa, sentada à beira da estrada, respirando com dificuldades. Tratava-se de um cardíaco; sozinho ali e sem forças para se levantar do lugar, os lábios e mãos já roxos do frio intenso, fatalmente o sujeito morreria ali. Assim, com a ajuda de mais uma pessoa, uma mulher, eles praticamente o carregaram alguns quilômetros até um albergue, tendo inclusive de levar também sua mochila. Cito este exemplo, como prova de que precisamos estar em boas condições de saúde antes de por o pé no Caminho; nada contra quem vai por razões de saúde - buscando alguma cura -, mas o risco de não se conseguir fazer o Caminho, nestas condições, é grande. É claro que para se fazer o caminho é necessário estar preparado para frustrações passageiras, mas muita gente não chega lá, razão por que os cuidados necessários.
Feito estas considerações, vamos às recomendações:

Condicionamento físico.
Se você pretende fazer o Caminho com intuito de aproveitar os valores que o Caminho confere ao peregrino, que não seja somente à premiação da Compostela, vai precisar estar bem de saúde. Recomendo antes, atividade física regular, diariamente, alongamento, musculação, de pernas e tronco principalmente, lembrar que você vai carregar peso equivalente a oito quilos, durante trinta dias ou mais. Fazer também as caminhadas, já levando algum peso na mochila, para ir se adaptando aos esforços; subir morros contribui para fortalecer as pernas. Por mais que você esteja preparado espiritualmente, esta vantagem não é bastante; Santiago ajuda sim, mas o indivíduo precisa também ser responsável consigo mesmo. O Caminho exige tanto das condições físicas da pessoa quanto da força da mente. Como se trata de muitos dias, como é o caso do Caminho de Santiago de Compostela e outros Caminhos longos, o estado físico se comporta como o elemento principal; a força deste é que alimenta o espírito; melhora a auto-estima da pessoa e faz com que ela chegue. É claro que você sentirá dores; dores nos pés, nas costas; dores intensas até; é impossível fazer caminhada longa sem sofrimento físico; mas nada que um descanso, arriar a mochila no chão, um banho quente, erguer as pernas pra cima, não possa resolver. Sabemos da nossa capacidade de superação, mas a superação também tem seus limites; a sua mente tem seus limites. E você não quer e não pode adoecer; você não foi lá, no Caminho, pra isso. Então, tenha apreço a si mesmo; faça atividades físicas ao menos dois meses antes de ir pro Caminho.

Calçando as botas.
Vamos começar pelos pés: cortar as unhas, deixando sempre uma sobrinha para proteger as pontas dos dedos. Se houver unha encravada, trate de cuidar disso antes - unha encravada não combina com caminhada; nem com rachaduras nos calcanhares. Antes de colocar o calçado, lubrifique bem a sola dos pés, mais as bordas, os calcanhares, entre os dedos, com alguma emulsão; alguns usam vaselina; a pele fica escorregadia e evita os atritos, logo, evita também a formação de bolhas. Particularmente, eu tive ótimas experiências com a emulsão de Propolina, um produto a base de própolis; encontrado em algumas farmácias do Sesi em Florianópolis. Na composição de 60 gramas contém: lanete n., glicerina, própolis purificada, mel de abelhas, conservantes e água desmineralizada. Andei o Caminho de Santiago inteiro e não fiz uma bolha sequer; não foi o que aconteceu com muitos peregrinos que ajudei a furar as bolhas por lá. Os pés, durante a caminhada, é a parte mais importante de nosso corpo; tenha com ele um sentimento mútuo: você cuida dele e ele lhe dá prazer.

Tipo de bota:
Usei uma Thimberlay, más há outras marcas de igual, ou melhor, qualidade; vale comprar uns dias antes para se adaptar ao calçado; e vice-versa. Pessoalmente, eu prefiro a bota ao tênis. Na descida dos morros, o aperto do cadarço da bota firma o pé pra trás, assim, protege as unhas e as pontas dos dedos. Não recomendo calçado de solado fino; o Caminho é cheio de irregularidades e pedregulhos. Levar de sobra uma ou mais palmilha e calcanheira de silicone.

Meia anti-bolha.
Já tem no mercado; adquiri nas lojas da Clinica dos pés, em Florianópolis, marca FEET, ela tem um solado mais engrossado; creio que não tive bolhas, devido aos fatos citados e mais este tipo de meia; meia-fina, nem pensar! A papéte (franciscana) não pode faltar; ideal para depois da caminhada, depois do banho, enquanto os pés descansam; mas há quem caminhe também com ela; aí eu recomendo que se faça um reforço no solado; como, colar uma palmilha sobreposta a sola comum – isto, diminui as conseqüências do impacto no chão, causado pelo peso da mochila. Nunca usar meias, sem antes lavar; por causa de fungos e problemas do suor, a meia fica endurecida e contribui para as bolhas; aos pés, o que há de melhor, senão, você ficará a pé!

Alongamento
Ta aí uma coisa que a maioria dos peregrinos não dá valor, ou, pra qual eles não têm muita paciência. Mas o alongamento, como o próprio nome diz, é para tornar os músculos e tendões flexíveis, evitar as conseqüências dos deslizes; os tendões, os músculos, devem estar sempre preparados para suportar as exigências da caminhada, uma pisada em falso, uma queda... Lembrar que a musculatura está exposta ao frio, ao calor, as intempéries do tempo e tendem a se defenderem, e fazem isso, se recolhendo, se encurtando; aí é que a gente se machuca. Em qualquer momento de descanso, é importante o alongamento. Você afrouxa os músculos, os tendões, que agradecem e entram em sintonia com o seu corpo.

Alimentação
Um dos maiores erros que percebi no Caminho foi alimentação incorreta. Alguns peregrinos, por questão de economia ou mesmo desconhecimento de causa, passam a maioria dos dias comendo sanduíches, muitos fazendo uso freqüente de refrigerantes; para o tamanho do esforço que se fará e a conseqüente perda de sais minerais, é uma alimentação muito pobre para as necessidades do corpo. Como são muitos dias, o enfraquecimento e adoecimento físico, fatalmente vão ocorrer. E em conseqüência, o esgotamento espiritual; e não é isso que buscamos lá no Caminho. Há que se fazer, no mínimo, uma boa refeição por dia: muita salada, azeite de oliva, deve-se aproveitar aquilo que há de bom por lá; frutas, sucos naturais; a proteína é muito importante, senão perde-se muita massa corporal; o carboidrato não substitui a alimentação básica: o peregrino é um atleta de longa exigência do corpo e precisa de massa muscular. Nunca usar produtos Diet ou Light durante as caminhadas de longa duração; o esforço é muito grande e arrisca a pessoa adoecer pela falta de nutrientes; Diet e Light são para pessoas sedentárias ou quando a pessoa é obesa ou apresenta distúrbios do colesterol. As pessoas confundem nutrientes com calorias; você pode ter uma alimentação saudável sem ingerir muitas calorias. E não tenha fastio ao vinho.

A mochila
Tende-se a levar na mochila mais do que se precisa; é a cultura do ter: da humanidade. Estamos sempre achando que vamos precisar mais do que podemos carregar; e mochila com excesso de peso: pode ser trágico para o caminhante! Nunca queira imitar àquele que leva mais peso, sua estrutura física pode ser diferente da dele, o seu condicionamento físico também; então, ajeite o peso conforme as suas possibilidades e necessidades do dia-a-dia; leve só o estritamente necessário. O que não deve economizar é num bom saco de dormir. O sono é o melhor reconfortante do peregrino - descansa o corpo e a mente.

Higiene
Durante os dias de caminhada, podendo, tome dois banhos, um quando chega da caminhada e outro pela manhã; digo isso, por que, habitualmente se dorme em colchão e travesseiro que pessoas estranhas já dormiram antes; por mais que o albergue seja limpo, nem todas as pessoas, o são: observei isso lá no Caminho de Santiago. Lembre-se que ali caminha gente dos cinco continentes; o banho desperta e previne doenças; fungos, germes patogênicos que por ventura existam nos tecidos da cama.

Capa contra chuva
São duas capas; uma própria pra mochila e outra pra você; lembre-se que tudo que você tem e precisa, naqueles dias, está na sua mochila. Nos dias de sol, retire a capa da mochila, os raios ultravioletas são germicidas e o sol elimina a umidade dos tecidos de dentro. Presenciei lá um peregrino praguejando a sorte, chorando sobre suas coisas molhadas. Eu também estava molhado, mas havia ainda roupas enxutas dentro da mochila; graças a uma capa. Você precisa estar preparado para as intempéries do tempo; não há no caminho nenhum lugar onde você possa se esconder da chuva e mesmo que houvesse, caso chova o dia todo, você não vai querer ficar esperando a chuva passar; talvez nem possa mesmo - você tem uma programação e um percurso a ser cumprido; vai precisar amassar barro sim. É neste momento que a bota supera o tênis; o couro protege melhor os pés e a meia. O seu condicionamento físico também é condição fundamental para que você não faça da caminhada um ato de crucificação e comece a se falar mal; se maldizer. Vale a pena se preparar antes.

O cajado
Muita gente não sabe usar; carrega o cajado em vez de fazer do cajado um aliado para os momentos mais difíceis, como nas subidas e descidas dos morros; uma das suas mãos, se não estiver usando dois cajados, deve permanecer livre. Se você escorregar, terá como se apoiar. Entendo que o cajado deva ter uma ponta, modo se firmar melhor no chão, principalmente nos lugares escorregadios. Vejo muitos cajados com a extremidade que toca o chão, arregaçada pra fora; pode falhar, escorregar, na hora em que se mais precisa dele. Ideal ser de madeira resistente, ou de fibra de carbono, pra suportar bem o peso. Certa vez ouvi um padre comparar o cajado à figura onipresente do grande Senhor; acabada a missa, fui à sacristia conferir se tinha ouvido direito e ele me confirmou o que dissera. E desde então, eu me sinto mais seguro com o cajado; já me sentia antes, para os eventuais riscos da peregrinação: muitas vezes o peregrino anda sozinho, quero dizer, sem a companhia de outro por perto, em lugares esmos, pode necessitar se defender; embora esteja com Santiago, o pai dos peregrinos. Mas o cajado é o símbolo maior do peregrino; então, que seja bom!

Protetor solar
Esta é outra desobediência peregrina: não passar o protetor solar. Deve ser o FPS 30 ou mais, a cada duas horas, entre dez horas e às quinze da tarde. Mais nas áreas expostas ao sol. No Caminho de Santiago usei o tempo todo, uma camisa de manga comprida, mas assim mesmo, passava protetor solar no dorso da mão; quando não, usava uma luva de proteção contra os raios ultravioletas, uv line , comprei na Farmácia Dermus, em Floripa; eu recomendo. Levei também um chapéu da mesma marca: tipo dos legionários, com aba caída pra trás, para proteger orelhas e pescoço. A maioria dos peregrinos que conheço é morador de cidade, a pele já imprópria para os raios solares; assim, não devemos nos descuidar; o sol é feito os remédios; é remédio, na dose certa; é veneno, nos excessos. De forma que, voltando da caminhada prolongada, deve-se consultar um Dermatologista.

1 de janeiro de 2008

Cão desmiolado dos infernos


Tinha-se aos ouvidos que não se tratava de latido comum; acuado lastimoso – parecia mais de angústia, de opressão dolorosa, que de ferocidade mesmo. E um tanto assombroso; razão porque ninguém era capaz de ir lá socorrer. Valente, que saísse da enrascada sozinho. Cão desmiolado dos infernos, sô! Sabia-se há muito que com aqueles cafundós não se brincava. Dizia o povo, ser lugar assombrado; acontecia-se lá muitas aparições procedentes de causas inexplicáveis; coisas de outros mundos - afirmavam, davam fé mesmo, os caçadores desajuizados, gente arrependida de caçada. Mas o danado do cão não tinha mesmo juízo - toda a noite corria lá atrás de bicho; sabe-se mais atrás de que? Quase sempre voltava ferido, o couro rasgado, manco, senão com a cara cheia de espinhos – vingança de ouriço-caixeiro qualquer –, quando tremia na febre semana ou mais. Mas não emendava. Sarava e punha o focinho a rumo; dar o troco, por certo. Farejava e sumia nos confins da floresta. Lá pelas tantas da noite, ouvia-se o seu latido às brenhas do mato, longe, como tivesse na pega de algum bicho. Vez e outras, parecendo ser ele mesmo a caça. Como àquele dia em que choramingava. Só de ouvi-lo, arrepiavam-se cabelos e pelos do corpo; contudo, ninguém tinha coragem de ir lá, acudir. Noite de breu. Nenhum alumiar discreto de lua no céu. Só ao longe, estrelas cintilantes e a lamúria do cão. Valente lá, vivendo seus momentos de aperto, de pura loucura e insensatez. Pensava-se que das aventuras já passadas, ele não voltaria; mas qual o quê, amanhecia no terreiro, no estremecimento do cansaço, lambendo as próprias feridas, a língua de fora e os olhos inda esbugalhados – como tivesse lutado com sobrenaturais. Era admirado por todos. Caia-lhe bem o nome: Valente. E a cor-pardacenta, da qual se valia na hora da caça ou da fuga - se é que o desajuizado permitisse alguém imaginar que pudesse ele fugir de alguma coisa: fosse onça ou coisa extraordinária?... Enfrentava tudo. Nada o intimidava; ao contrário, parecia gostar da peleja, enquanto os outros cães ficavam ao redor da casa, ressonando a preguiça. Não era o seu caso...
Cedo, aquecia-se ao sol da manhã, modo se recuperar da umidade da floresta onde labutava até o amanhecer; talvez, por conta do instinto caçador, fosse ele parente próximo de algum lobo, filho talvez, ao que demonstrava o endiabrado cão. Ninguém sabia ao certo. Farejava como nenhum outro. Corria como um raio. Desaparecia, feito dia na escuridão. Se o amarravam, ele ruía a corda. Gostava mesmo era de caçar. Ou de cruzar; tinha filhos à revelia pela redondeza. Mas naquele dia, o latido-choramingado, parecia ser coisa das piores. Longe de ser bicho pequeno. Havia lá nos cafundós, pelo barulho do entrevero, confusão das grandes. Todos da morada vieram ao terreiro, dar ao coitado, consolo de pensamento. – Meu Deus, o que será desta vez? Força Valente!... - gritavam. A dona da casa, quem comumente lhe curava as feridas com salmoura e erva medicinal, ali, segurando na reza - fosse espírito-mal, quem sabe ajudava. Quem sabe... Nem tanto, se fosse onça das malvadas. Embora Valente já tivesse enfrentado algumas e saíra da luta com dignidade, diga-se, sem pedaços das orelhas, o lombo ferido, modo que as enfrentava a unha e dente; não punha galho dentro. Naquela noite, podia haver duas ou mais; vá saber...
O povo lá no terreiro, acudindo na fé. Mas, para cão desmiolado, metido na selva àquelas horas da noite, nem mesmo oração. O latido agoniado; choramingado. Até ameaçaram ir lá, interceder, três ou quatro dali, de lanterna, espingarda, foice, facão; mas naquela mata ninguém se metia; muita mais em circunstâncias tais; assim, recuaram... O cão já devia ter aprendido, tanto que apanhava por lá, mas não..., o intrometido, intrigante, Valente, voltava sempre pra lá; como tivesse contas a acertar. Sabe-se lá com qual bicho, onça, jaguatirica, javalis, ou sobrenatural qualquer? Naquela noite Valente latia, rosnava lastimoso, leonino, lento, longe, enquanto se pode ouvi-lo; naquela noite. Depois, nunca mais...